miércoles, 4 de agosto de 2021
METÓDICA DESORDEM
André Dick
[Especial para Weblivros]
Lançado pela editora Olavobrás, o livro Prosa do que está na esfera traz ao leitor brasileiro a primeira mostra de poemas de León Félix Batista, nascido em 1964 na República Dominicana. A tradução para o português, fiel ao experimentalismo do original, é de Claudio Daniel e Fabiano Calixto. Se Claudio já havia traduzido Eduardo Milán e José Kozer, entre outros, trata-se da primeira incursão de Fabiano como tradutor, por meio de um poeta não apenas desconhecido como também instigante. Isso porque León rompe a linearidade que estamos acostumados a ver, ao seguir na contramão de uma lírica coloquial, focada no cotidiano, optando pela analogia e desfazendo limites entre a prosa e a poesia.
A obra em questão se caracteriza por trazer uma cadeia de pensamentos a princípio desconexos, ou seja, sem aparente unidade, que carregam uma inflexão lingüística diferente tanto do vocabulário quanto da percepção poética comuns. Leitura difícil, à primeira vista áspera, Claudio, sem procurar rótulos, percebe nela “insólitas associações de palavras”. Contudo, mesmo ao lidar com a analogia (a “religião” da poesia moderna, para o insuspeito Octavio Paz), a sua linguagem, construída de forma complexa, não encobre a materialidade das palavras. São insólitas as associações, caracterizadas pelo emprego inusitado de metáforas; de resto, estamos diante de um autor que prima pela forma e atrai para seu entendimento o leitor. Cabe a este controlar a dispersão dos panoramas trazidos por cada poema, à medida que transforma a multiplicidade num caminho a ser incorporado na unidade. Com essa característica, Prosa do que está na esfera não trabalha com idéias em que predomina o excesso sem rigor.
Quando Claudio observa que León extrai seus objetos do cotidiano imediato e os remodela como “seres de linguagem”, ele já está apostando na idéia de que, na posição autônoma, esses seres (objetos ou as palavras que os representam), livres para adotar o caminho da analogia, delineiam uma “violência verbal”, e esta, com sua ruptura consciente, elimina o exagero. Recolhendo vestígios de memória, detritos do mundo, o melhor do trabalho de León - e isto não é um elogio ligeiro - parece ser filtrado por palavras que, distintas entre si, aprofundam ainda mais sua estranheza com a releitura, através dessa ruptura.
CICATRIZES TEXTUAIS - Quem tiver o pocket book de León à mão pode imaginar que, por ser escrito em forma de prosa, deixa de ser um livro de poesia. Equívoco aceitável, já que não estamos acostumados com terrenos híbridos. O texto de León, bastante imagético, ao observar o tom e o peso de cada vocábulo, controla, sob um olhar crítico, o que poderiam ser alucinações processadas por uma escrita automática. É como se ele construísse uma “metódica desordem”, e quisesse organizar uma “desordenada sucessão de circunstâncias”. Nesse terreno híbrido, as analogias elaboradas, não raro violentas, responsáveis pela referida “violência verbal”, procuram a cisão e acabam compondo o painel de um desastre que busca recolher seu cacos, painel por finalidade desautomatizado.
Resulta disso, também nessa corrente de reflexão, a preferência desse autor do novo barroco por imagens negativas. Seu interesse principal é selecionar os resíduos expelidos pela realidade autodestrutiva: “que farei para dilatar irredimíveis vias mortas”; “se desgastam meus músculos de comando” (em “Sissy’s velvet toolbox”); “O rio das pernas (acidente coagulado) ao correr produz náuseas”; “a decomposição se espessa e carboniza” (em “O banho das núpcias”); “A cada salto sucessivo, em toda fuga da margem, rigores ambiciosos que fecundam em minhas chagas” (em “Prosa do que está na esfera”); “E nem o olho nem a lente calarão sua massa em crise, confinando-a a sua insólita imobilidade” (em “Bianca Jagger depilando-se ante a Warhol”, título, ressalte-se, bastante insólito). Perceba-se que o corpo, para León, é uma prisão em que a dor permanece conscientemente. Na entrevista ao final do livro, essa idéia se esclarece através do depoimento do autor, ao comentar seus problemas de saúde, sobretudo na infância: “Nasci e cresci enfermo”. Não queiramos solucionar, é claro, a poética do presente autor através de problemas pessoais, mas, como vemos, a doença física acompanha sua própria postura de desaparecimento e não poderia deixar de existir em sua escritura.
Em outro poema que nos serve de bom exemplo, “Clandestinos em Strawberry Fields, León observa que seu corpo é um cadáver (como Paul Celan, aliás, definia a palavra): “Se haveremos de crer em minha sinopse (e o eclipse de artifício assim o indica) dois corpos se destacam no ermo: pretérito que o texto desenvolve em porvir. O meu é como um lastro que me subtrai de erguer-me, já cadáver e em vulgar obsolescência”.
Ainda recém-nascido, trazendo suas cicatrizes textuais, Prosa do que está na esfera certamente é apenas a primeira incursão desse jovem poeta dominicano no Brasil. Integra-se a novas leituras ou discussões adequadas ao interesse de sua obra, em relação ao novo barroco, por instigar uma reflexão sobre a linguagem. Resta, desta vez, saber se dessa reflexão conseguiremos separar a desordem sem método, tão comum na poesia insuficiente, indisposta com qualquer traço experimental, da metódica desordem, seja em decomposição, seja com náuseas e chagas por vezes incômodas.
André Dick é poeta e ensaísta, autor do livro Grafias (2002).
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